Leviatã de toga – mito ou realidade?

Nuevas profesiones

Leviatã de toga – mito ou realidade?

Procurador do Município de Fortaleza - Ceará - Brasil Mestre e Doutor em Direito Constitucional - UNIFOR Pós-Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - Portugal - FDUL Professor de Direito Constitucional

Conhecido das narrativas bíblicas, o Leviatã (Beemote ou Behemoth, criatura mencionada em Jó 40:15-19), foi por Thomas Hobbes (1588-1679) descrito como produto da arte que “vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado.” (Leviatã ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil. Tradução de João P. Monteiro e Maria Beatriz N. da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 11).



"vai mais longe ainda, imitando aquela criatura racional, a mais excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado"



Reconhecido o pessimismo antropológico de Hobbes, ao acentuar a natureza “caída” do homem, a sobrevivência no “estado de natureza” não proporcionava proteção e harmonia das relações sociais. O homem lobo do homem, prisioneiro de suas paixões, era uma criatura insegura, frágil e constantemente ameaçada pela presença do outro. Com o nascimento do Estado, produto de um contrato social, uma dupla realidade se percebe: a primeira, a tentativa de legitimar o governo monárquico e, a segunda, explicar, logicamente, a organização estatal que culminaria na formação do Estado com funções (poderes) definidas. (SKINNER, Quentin. El nacimiento del estado. Traducción de Mariana Gainza. Buenos aires, Gorla, 2003). Do ponto de vista histórico, o Estado monárquico-absolutista encontrava-se consolidado na primeira metade do Século XVII na Europa ocidental.



Traço característico dessa fase é a origem popular do poder. Governo monárquico, democrático ou aristocrático sempre apresentava vínculos com o poder do povo, verdadeiro titular do poder político. As promessas de segurança, paz, poder legítimo, passaram a fazer parte da agenda dos discursos políticos. O protagonismo dos poderes oscilava conforme a preponderância do Poder Legislativo ou Poder Executivo na construção e efetivação das relações interinstitucionais e no governo da sociedade. Assim é que, no Estado Liberal, em que predominava a sacralização da lei, o Poder Legislativo era o espaço das grandes decisões, cabendo ao Executivo o cumprimento estrito dos enunciados normativos (princípio de legalidade) e ao Poder Judiciário “dizer” o que diz a lei (la bouche de La loi, diria Montesquieu). Com o advento do Welfare State (Estado de bem-estar social), as políticas públicas necessárias e adequadas à efetivação dos direitos sociais passaram a apresentar prioridades sem que, no entanto, a preocupação com os direitos individuais fosse comprometida. Para a consecução das metas de proteção e promoção dos direitos sociais o Poder Executivo assumiu o papel de agente principal no diálogo com a sociedade e os demais poderes. A boa administração, a eficiência na prestação de serviços públicos, a responsabilidade política, rompem o Século XXI como direitos cuja prestação pode ser exigida judicialmente. É notório o protagonismo executivo amparado na ideia de lei segundo foi escrita. O agigantamento do Estado, a crescente intervenção na economia, o patrocínio de direitos sociais, irregradamente, levaram o Estado ao desequilibrasse da balança receita x despesa. Os regimes autoritários da América do Sul (Venezuela, Brasil e Bolívia, principalmente) levaram o Welfare State a uma crise inigualável, a ponto de desestruturar os orçamentos previstos para cada ano. A crise deu origem a proteção de direitos no Poder Judiciário, elevando astronomicamente o número de processos judiciais versando sobre violações de direitos fundamentais por parte do Estado. O desmantelo do Estado fora forte demais. Intelectuais, acadêmicos, alheados do mundo por suas ideologias, contribuíram para justificar o estado de coisas, preferencialmente, culpando o outro (vide INGRAO, Chritian. Crer e destruir: os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2015 e ARON, Raymond. El opio de los intelectuales. Traducción del Enrique Alonso. Barcelona: RBA, 2011).

As reiteradas violações de direitos fundamentais fizeram do Poder Judiciário o protagonista no resgate e proteção dos mesmos. A arena judicial contramajoritária foi responsável pela formação de vários modelos de juiz: garantista, investigador, ativista, autocontido, Hércules, Hermes, Hamlet, Zorro, justiceiro, etc. A multiplicidade de decisões e fundamentos relevantes escritos pela pena desses Magistrados ocasiona insegurança e dificulta (às vezes, impede) o conhecimento das razões de decidir. E quando a decisão é colegiada, a situação é agravada na medida em que os votos são expostos com conclusões idênticas e por fundamentos distintos. É dizer: “todos os caminhos levam a Roma”. Relevante citar, neste ponto, a Ação direta de Inconstitucionalidade – ADI, n. 4.277-DF, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 05/05/2011, na qual se reconheceu a equiparação das uniões homoafetivas a uniões estáveis. Ora, o que causa dificuldade não é a decisão em si, mas identificar as razões, os fundamentos, considerando que cada Ministro apresentou variada ratio decidendi em seus votos. A situação é tida por Virgílio Afonso da Silva como sincretismo metodológico (in Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 115-143).
Vários juristas apontam essa realidade e denunciam a atitude tangencial ao arbítrio que é particular nessa atividade de interpretação e aplicação do Direito (STRECK, Lenio Luiz. TRINDADE, André Karan (Org.) Os modelos de juiz. São Paulo: Atlas, 2015 e OST, François. Jupiter, Hercules, Hermes: tres modelos de juez. Revista Doxa, n. 14, Alicante (Espanha), 1993.).

Não restam dúvidas dos benefícios advindos de decisões que privilegiam direitos fundamentais constitucionais em detrimento de ação ou omissão do Estado. A conduta contramajoritária, no espaço dialógico do Poder Judiciário, não é má em si mesma. A questão torna-se grave quando se indaga sobre os limites de atuação do Judiciário. O risco de um Leviatã de Toga, uma sociedade governada por juízes, uma Supremocracia, é cada vez mais acentuado. A relativização incontida da interpretação dos fatos (inclusive quando se reconhece que não há fatos ou que fatos determinam a interpretação, falam por si) não oferece respostas seguras o suficiente para a criação de modelos harmônicos de decisão ou conhecimento adequado dos fundamentos decisórios.

A sociedade não pode ficar refém de “modelos de juiz”. O poder de decidir exige o dever de fundamentar (não discricionariamente), de forma inteligível e consoante o Direito. Não se trata de fundamentar conforme as opções, mas de fundamentar conforme o Direito.

Categoria

categoria: Noticias